Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
[email protected]

Decodificando as ‘guerras perpétuas’, por Valdir da Silva Bezerra

A história nos mostra que são necessários enormes sacrifícios humanos para que uma guerra chegue finalmente à sua conclusão

Eternal Crusade

no Sputnik Brasil

Decodificando as ‘guerras perpétuas’: uma análise sobre a (longa) duração dos conflitos atuais

por Valdir da Silva Bezerra

Os conflitos armados modernos vêm sendo caracterizados por sua longa duração e pela enorme quantidade de recursos exigidos pelos lados beligerantes. Aquilo a que Immanuel Kant se referia como a natureza “bárbara” das guerras voltou a fazer parte do cotidiano de muitos, seja quando falamos do Leste Europeu ou do Oriente Médio.

Por certo, a falta de um mapeamento político claro que aponte para uma solução de paz em ambas as regiões é uma das principais razões pelas quais as guerras contemporâneas têm se prolongado por tanto tempo. Ora, o general prussiano Carl von Clausewitz, tido como um dos principais teóricos militares do século XIX, caracterizou a guerra como “um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”, portanto há que se ter em vista duas coisas quando olhamos essa afirmação: 1) que grau de força será aplicada; e 2) qual a vontade a ser imposta ao inimigo. Nos tempos atuais, tanto o primeiro quanto o segundo fator parecem não estar mais tão bem alinhados quanto no passado, provocando assim o prolongamento dos conflitos.

Ademais, entre as várias outras razões que também explicam essa tendência está a falta de vontade política entre as partes beligerantes para a sua resolução célere. Desde a guerra empregada pelo Ocidente contra a Rússia na Ucrânia até a guerra de Israel em Gaza, vemos claramente a ausência de um compromisso político por parte dos principais atores envolvidos no sentido de colocar um fim às hostilidades em curso.

A história, por sua vez, nos mostra que são necessários enormes sacrifícios humanos para que uma guerra chegue finalmente à sua conclusão, sintoma esse que parece estar em jogo novamente aqui.

A título de exemplo, sabe-se muito bem que os Estados Unidos estão envolvidos indiretamente em ambas as guerras, seja na Ucrânia ou em Gaza, agindo como principal financiador de Kiev e do governo de Israelsem demonstrar interesse em negociar uma solução diplomática para tais conflitos. Não à toa, vemos como Washington procurou evitar o diálogo com a Rússia a respeito da Ucrânia, assim como procurou ignorar os clamores da comunidade internacional por um cessar-fogo em Gaza.

Uma outra razão para a inércia das guerras atuais é o descompasso entre os meios aplicados e os fins pretendidos. Num primeiro caso, por exemplo, apesar da clara disparidade de poder a favor da Rússia em relação à Ucrânia, o Exército russo tem sido cauteloso militarmente, evitado utilizar todos os recursos convencionais à sua disposição, dada sua preocupação com a população ucraniana. Já a preocupação com a população palestina, por sua vez, não tem sido um fator considerado por Israel no âmbito de suas operações em Gaza. Em última análise, Moscou tem empregado um tipo de atuação militar voltada para enfraquecer a Ucrânia aos poucos, minando-a econômica e moralmente, de modo a fazer com que Kiev caia no “bom senso” e retorne à mesa de negociação. Já Israel tem empregado meios desproporcionais para atingir seus fins pretendidos, os quais, segundo Netanyahu, envolvem a neutralização total do Hamas em Gaza.

No Oriente Médio, além do mais, os Estados Unidos contribuem ativamente para as despesas militares de Israel, fornecendo-lhe apoio político quase que incondicional, mesmo às custas do sofrimento indizível dos palestinos, ampliando assim a intransigência de Tel Aviv perante os clamores da comunidade internacional.

Israel já declarou que o conflito em Gaza se trata de um jogo de soma zero, ou seja, de que não deve haver margem de negociação para com o Hamas.

No mais, a forte dependência da Palestina dos recursos de abastecimento de água e eletricidade provenientes de Israel agrava ainda mais o problema, permitindo a Tel Aviv prolongar a guerra pelo tempo que lhe for necessário.

Outro importante fator que se faz necessário destacar quando falamos das guerras atuais é o aspecto territorial dos conflitos. Fica claro a partir da questão referente ao Leste Europeu que a Rússia não renunciará a seus novos territórios obtidos em setembro de 2022, ao passo que as autoridades em Kiev insistem em retornar às fronteiras ucranianas de 1991. Esse desejo impraticável de Zelensky de restabelecer o controle sobre a Crimeia e Donbass fazem com que sua posição negociadora assuma um caráter maximalista, dificultando em muito as perspectivas de paz. Ao mesmo tempo, a Ucrânia periga enfrentar uma situação econômica das mais complicadas em toda a sua história, quando as hostilidades terminarem, por conta da necessidade de restabelecimento de sua infraestrutura e, em especial, pela dívida que o país contraiu com o Ocidente.

Para além disso, do ponto de vista econômico, ambas as guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio estão inextricavelmente interligadas com o complexo militar-industrial estadunidense, cujos contratos com os governos de Kiev e de Tel Aviv se tornaram bastante atrativos para esse segmento. As guerras de hoje, portanto, são muito mais complexas do que no passado justamente por envolverem os interesses de companhias privadas americanas que lucram com a venda de armas ao exterior, cujo lobby no Congresso é tão forte a ponto de influenciar as próprias políticas adotadas pelo governo em Washington.

Infelizmente, enquanto os “mercadores da morte” lucram, as guerras se perpetuam e o número de vítimas inocentes decorrente desses conflitos só aumenta com o tempo. Como se não bastasse, a destruição generalizada de cidades inteiras, a migração forçada de parte da população local para outros países e regiões, a recessão econômica subsequente e os vários registros de desolação se ampliam a cada dia, numa espiral sem fim. Assim sendo, à medida que essas guerras modernas evoluem e à medida que organizações internacionais como a ONU se mostram ineficazes diante da situação, o mundo testemunha a aterradora perspectiva de sua indefinida resolução. A sensação que fica, então, é a de que essas guerras são verdadeiramente “perpétuas” enquanto duram, em especial para aqueles diretamente afetados pela destruição e pelo caos dela advindos.

As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.

Valdir da Silva Bezerra – Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo. Membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia da Universidade de São Paulo (NUPRI-GEASIA). Pesquisador do Grupo de Estudos Sobre os BRICS da Universidade de São Paulo (GEBRICS-USP). Colaborador do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS) da Universidade Federal de Santa Catarina.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Observatorio de Geopolitica

O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Traduzindo a definição de Clausewits sobre impor aos adversários a cumprir nossa vontade, a história dos impérios nos informa que essa vontade é o objetivada em produção de bens e serviços que propricia mais riquezas e poder para os impérios.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador